quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Dia a dia dos sem abrigos:



(também é a historia)

Lisboa, 07 Jan (Lusa) - As temperaturas negativas que se aproximam da capital portuguesa não intimidam os sem-abrigo que, já habituados ao frio da noite, fazem da cidade as portas das suas casas. Carlos Rocha, 71 anos, mora na rua desde 1992 e desde então que faz das roupas e dos cobertores oferecidos por Organizações Não Governamentais os companheiros de uma luta contra o frio, que perde muitas vezes, demasiadas. Hoje mora na rua António Pedro, perto do jardim Constantino, local onde todas as noites vai buscar a comida que lhe aquece o estômago, mas "noutra vida" até já foi pintor nas horas livres. "Vim morar para a rua porque calhou. Morreu a minha mulher e a partir daí foi assim", disse o idoso, após beber o copo de sopa oferecido pela "Dona Natividade", uma voluntária que há 18 anos se juntou ao Exército da Salvação, e que três dias por semana distribui comida e "palavras amigas" aos sem-abrigo da capital. Marcado pelas dificuldades que a vida nas ruas traz, Carlos Rocha já não se recorda quando conheceu a mão amiga da voluntária, que se orgulha da sopa "verdadeira e consistente" que oferece aos sem-abrigo. "É com grande amor que nós fazemos este trabalho. Normalmente distribuímos sopa, pão, iogurtes e fruta, quando temos", disse à agência Lusa Natividade que, a cada ronda oferece 250 copos de sopa aos sem-abrigo. Com a vaga de frio às portas da cidade, a câmara municipal de Lisboa já activou o plano de contingência para apoiar estas pessoas, prevendo o reforço da distribuição de comida e bebida quentes, agasalhos e mais 30 camas para pernoitar. Com o olhar carregado pelas dificuldades que atravessou nos últimos 16 anos, Carlos Rocha, já habituado a dias de frio de outros invernos, espera receber roupa quente que o ajude a passar as próximas noites. "Tenho que arranjar um camisolão", disse o sem-abrigo, acrescentando que, com a chegada da vaga de frio, o que há a fazer passa por agarrar-se "ao cartão" que lhe faz de cama num passeio bem perto da Almirante Reis. Mas nem sempre as pessoas que recorrem ao auxílio dos voluntários das ONG se encontram a viver nas ruas. É o caso de Fernando, que, embora já tenha feito das ruas a sua residência "durante tanto tempo", hoje, graças ao subsídio de reinserção social, consegue alugar um quarto. "É muito fácil entrar na vida das ruas mas é muito difícil sair. Já não tenho muitos sonhos, agora só quero ir devagarinho", disse o antigo sem-abrigo, que, após sorver a comida oferecida pelos voluntários do Exército de Salvação assistiu à partida da carrinha "da sopa" em direcção a outros rumos. Na noite de terça-feira os quatro voluntários do centro de acolhimento do sem abrigo de Xabregas distribuíram 250 sopas no jardim Constantino, nos Anjos, no Regueirão dos Anjos, na Praça do Comércio e em Santa Apolónia. Este auxílio é sempre bem recebido por aqueles que mais precisam, quer seja através de comida, de roupas ou simplesmente de uma palavra amiga. "Chelas" já perdeu a conta há quantos anos dorme nas ruas, mas é com orgulho que mostra o colchão onde pernoita com "amigos" nos Anjos. Humanista por convicção, Chelas vê na Dona Natividade uma amiga, mais não seja pelos conselhos que recebe, mais uma vez, para aproveitar a vaga de frio que se aproxima e regressar a casa, para junto da família. "Vou aproveitar para tomar um rumo. Um novo caminho", disse o sem abrigo enquanto incentivado pelos voluntários. Próxima paragem: Regueirão dos Anjos. De acordo com a voluntária do Exército de Salvação este é o local onde os toxicodependentes sem-abrigo se concentram. Uma rua escura mostra os traços de uma vida alternativa: seringas convivem com colchões e camas de cartão que, às 21:30 já estavam compostas pelos seus "inquilinos" habituais. "Hoje em dia já vemos muitos sem-abrigo jovens. Raparigas de 13 e 14 anos, algumas delas grávidas, costumam vir pedir-nos comida e agasalhos", referiu uma das voluntárias, enquanto olhava para algumas das cinco pessoas que dormiam naquela rua. A vontade de ajudar estas pessoas é muita e o medo, esse, só vem quando já se consegue ver o fundo da panela de sopa, o que impossibilita o cumprimento do percurso habitual. Em Santa Apolónia terminou mais um dia de sacrifício por parte destes voluntários, uma campanha de distribuição recompensada com a certeza de que tornaram uma noite difícil num refúgio menos penoso a pelo menos 250 pessoas, um número que, no entanto é escasso, dada a quantidade incerta de sem-abrigo que reside na capital portuguesa.

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