sábado, 7 de novembro de 2009

A voz dos sem-abrigo





Ele perdeu o seu trabalho, família e esperança. Vive nas ruas e, na internet, encontrou um sentido para a vida e um meio de luta


Kevin Barbieux acorda às 4h45, arruma a cama, veste-se e caminha até um Burger King no centro de Nashville, no Estado americano do Tennessee. Come ovos com bacon e toma uma Coca Light ao pequeno-almoço. Lê um pouco – adora o mestre da psicanálise Carl Jung –, conversa com os colegas, passa por um café, fala com algumas pessoas e olha para os jornais do dia. Então vai para a biblioteca pública, e lá fica até à hora em que fecha, dividido entre livros e um computador ligado à internet. Todos os dias ele actualiza o seu blog, um diário que pode ser lido por qualquer cidadão que navegue na rede: www.thehomelessguy.blospot.com. Seria uma rotina banal, não fosse Barbieux, de 41 anos, um sem-abrigo.
Ele mora nas ruas e abrigos há duas décadas. Casou, teve dois filhos, mas não conseguiu manter 'uma vida normal'. Barbieux desconfiou de Deus e perdeu a fé em si mesmo, mas foi salvo pelos livros e pela tecnologia. Agora usa o seu blog, que teve mais de 100 mil visitantes em menos de três meses, para 'legitimar os moradores da rua, pedir que sejam tratados como seres humanos, com compaixão, aceitação e assistência'.



ÉPOCA – Como foi parar à rua?
Kevin Barbieux – Em 1982, resolvi deixar a minha cidade, San Diego. Vim até onde o dinheiro deu, Nashville. Não consegui trabalho e passei a dormir no carro. Quando o frio ficou insuportável, procurei um dos abrigos da cidade para os sem-abrigo.
ÉPOCA – Muitas pessoas ficam sem dinheiro e não vão morar na rua. Por que você fez essa escolha?
Barbieux – Ninguém escolhe viver na rua. Para mim foi algo inevitável, porque tenho distúrbio de ansiedade e dificuldades de aprendizagem. Não possuo as condições necessárias para cuidar de mim mesmo e viver de forma independente.
ÉPOCA – Os seus pais não o ajudaram?
Barbieux – Eles têm tão pouco interesse quanto compreensão sobre a minha situação. Não são pessoas instruídas nem generosas. Ter sido criado por esse tipo de gente deve explicar parte do meu problema.

'A cultura hedonista dos Estados Unidos torna difícil uma pessoa como eu encontrar o seu lugar. É uma existência solitária. Não foi por isso que me tornei um sem-abrigo. Desenvolvi esta visão por causa da vida que levo.'

ÉPOCA –Já teve emprego?
Barbieux – Um dos últimos foi num misto de loja e restaurante. Havia tanta gente no ambiente que eu não conseguia sentir-me no controle, ficava muito nervoso e aí tinha ataques de ansiedade. Transpirava e ficava sem ar, não conseguia falar. E aí ficava mais nervoso.
ÉPOCA – Como foi o seu casamento?
Barbieux – Eu e minha ex nos conhecemos nas ruas, mas ela nunca foi sem-teto. Com ela consegui levar uma vida 'normal' por um tempo. Mas o amor não durou e eu voltei para a rua. Deixei as crianças com ela. Não queria que elas se sentissem divididas.
ÉPOCA – Como acha que os seus filhos lidam com a sua condição?
Barbieux – Eles não sabem de nada. A minha ex-mulher evita qualquer tipo de assunto delicado, e essa é uma das razões pelas quais nos separamos.
ÉPOCA – Como começou a fazer o blog?
Barbieux – Participo num fórum de discussão na internet sobre a cantora gospel Sarah Masen. Alguém mencionou os blogs e eu resolvi fazer o meu.
ÉPOCA – Com que objetivo?
Barbieux – Sempre fui lento a ler, mau na gramática. Eu considero-me inteligente, mas não pude desenvolver-me na rede pública de ensino. Então tomei para mim a tarefa de melhorar a minha compreensão do mundo e de superar as minhas limitações, tornar-me mais sociável. Tentei fazer um jornal para os sem-abrigo, que durou apenas dois números, o que despertou em mim o gosto pela escrita. Há alguns anos mantenho um diário pessoal. Numa instituição fiz um curso de um ano que me ajudou a ler melhor.

'Muita gente vê-me como uma grande ameaça, porque defendo os direitos de quem vive na rua e não tem acesso a nada. A minha simples existência contradiz a percepção de realidade dessas pessoas. ‘


ÉPOCA – O que é mais difícil de explicar?
Barbieux – As pessoas vêem o tema em preto e branco, mas há muitas nuances. Alguns acreditam que os sem-abrigo são quem moram na rua. Mas, se passar as noites numa, é lá a sua casa? E morar por favor? Eu, por exemplo, às vezes durmo em abrigos, mas, quando não encontro vaga ou chego depois do horário, fico nas ruas mesmo

Escrito por: Paula Mageste
Adaptado ao Português (Portugal) : Jéssica Ribeiro 
 


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