sábado, 7 de novembro de 2009

Reportagem Uma noite com os sem-abrigo

O cacau quente conforta o estômago e aquece o corpo, mas são as conversas, os desabafos escutados pacientemente pelos voluntários, que dão alento ao espírito. Ali todos se conhecem, e às quartas-feiras, quando passa a unidade móvel dos Médicos do Mundo, a Praça da Alegria, em Lisboa, sem tecto nem paredes, quase parece uma casa.

Os Médicos do Mundo criaram o projecto Noite Saudável em 2001 para ajudar uma população cujo número real ainda não é perfeitamente conhecido. Sabe-se que, em 2004, um estudo da câmara de Lisboa determinou existirem 931 sem-abrigo em Lisboa. Tanto que o Instituto da Segurança Social está a fazer o primeiro levantamento a nível nacional, cujos resultados devem ser divulgados em 2006.
Todas as quartas-feiras, das 20.00 às 24.00, a unidade móvel dos Médicos do Mundo estaciona a carrinha na Praça da Alegria. Naquela noite, a novidade é o cacau quente. E, tão ou mais importante que os cuidados de saúde prestados a cada um que ali se abeira, é a confiança que se estabelece e os sorrisos que se arrancam a quem nada tem. "Para nós não são os sem-abrigo... são o António, o José. Conhecemo-los e é importante que saibam que podem contar connosco", diz Paula Fernandes, responsável pelo projecto.
Cabe sempre mais um
O ambiente é familiar, todos se tratam pelo nome, como se fossem vizinhos desde sempre. Mas nem por isso os novos inquilinos são olhados com desconfiança ou postos de parte. "Se não puser problemas, qualquer um que venha é bem aceite. Por isso estamos cá todos", diz Pedro Nóbrega, que vive num banco da praça há mais de dez anos. É difícil saber com certeza o que o trouxe para a rua. As frases são confusas e sem muita ligação, intercaladas com momentos de um silêncio pesado. "Desorientei-me por causa de uma mulher e, por isso, estou com os camaradas. Mas tenho um filho de 16 anos e ainda hoje somos amigos".
Depois da separação começou a viajar. Foi imigrante em Espanha, França e Alemanha, países para onde ainda vai trabalhar de forma sazonal. "Lisboa é uma grande cidade, mas também muito pequenina para nós. Não chega para ganhar dinheiro". Mesmo assim, "nunca precisei de esmolas de ninguém", diz com orgulho. Ao filho, "nunca lhe faltou nada. Parte do que ganho é sempre para ele", diz. Nos intervalos deste vai e vem constante pela Europa, a rua é sempre o hotel escolhido. "Sempre que venho telefono à família para saber se está tudo bem. E depois fico por aqui, a curtir com eles", diz apontando na direcção dos bancos de jardim.
Fugir da solidão
Mas não são só os que vivem na rua que dão vida a esta praça. "São cada vez mais os idosos que encontramos à noite. Vivem sozinhos e esta é uma oportunidade de saírem do isolamento", diz Paula Fernandes. É o caso de Avelino Marques que todas as quartas-feiras vem à unidade móvel dos médicos do mundo para medir a tensão. Não é sem-abrigo, mas o dinheiro também não abunda - à reforma de 210 euros tira-lhe, todos os meses, 195 para pagar o quarto onde vive. Aos restantes 15 euros junta-lhes mais 100 que a Misericórdia lhe dá e assim vai vivendo. De segunda a sábado, faz as refeições numa das dependências da Santa Casa, na companhia de mais idosos em situação semelhante.
Um dia, há uns anos, teve que sair de casa para tratar da mãe, que adoecera. "A minha mulher não queria a minha mãe lá em casa, e eu tinha que tratar dela... tive que sair." Hoje vive sozinho. Há sete anos que não falava com a filha, contacto que reatou há pouco tempo. Em breve vai partir para a Alemanha, onde a filha é imigrante, e reencontrar o que lhe resta da família. Mas não por muito tempo. "Vou só por um mês, depois volto para cá. Estou é com medo da viagem de avião... e logo eu que andei tanto de avião!"
Assim que acaba de falar o rosto transfigura-se. Os olhos pequeninos brilham mais, o sorriso doce ganha a dimensão de um sonho, e as palavras saem em catadupa, naquele tom de voz de contador de histórias à volta da lareira. Um olhar mais atento e o pin em forma de bola de futebol na lapela do casaco verde denuncia-o. Marques foi jogador de futebol. "Do Sporting", diz com orgulho. "Era defesa esquerdo e chamavam-me o homem do lencinho por jogar sempre com um lencinho. Ganhei quatro campeonatos, duas taças de Portugal e uma Taça do Século".
Mais do que do presente, das dificuldades que tem ou não, é destes anos de glória que Marques gosta de falar. Ainda conheceu a equipa dos famosos cinco violinos - Vasques, Albano, Travassos, Peyroteo e Jesus Correia - que encantou por essa Europa fora. "Era com o Travassos que me dava melhor. Um dia estávamos no jardim do Campo Grande a jogar à bola e fomos presos - naquele tempo nem podíamos jogar à bola. Fomos para a esquadra do Campo Grande mas quem lá estava era o chefe Camilo, um grande sportinguista, que nos deixou sair logo." Podia estar horas a falar do tempo de futebolista e isso nota-se. Desfia cada memória ao pormenor, e o olhar perde-se na saudade. Hoje ainda vai ver todos os jogos a Alvalade, porque tem cartão vitalício, de acesso gratuito. "Mas já não é a mesma coisa", lamenta.
Viver os dois lados
Micola é voluntário dos Médicos do Mundo há dois anos. Veio da Ucrânia há cinco para fugir da pobreza. "A gente lá não sabe nada de Portugal, mas quando se abriram as fronteiras todo o mundo fugiu da pobreza o mais que pôde. E depois de Portugal já não há para onde fugir, é só oceano", diz meio a brincar meio a sério. Micola não tem mais de 30 anos. O rosto redondo, os olhos azuis e o sorriso permanente, dão-lhe um ar bonacheirão e bem disposto. No seu país natal trabalhava "para o governo, era assistente de deputado no Parlamento", aqui, quando chegou, veio trabalhar "de picareta e pá". Fugiu da miséria, mas a realidade que encontrou não foi bem a que sonhara - o patrão não lhe pagava e, em pouco tempo, estava sem emprego. "Nunca dormi na rua, mas cheguei a apanhar comida do lixo." E foi numa das noites em que tentava encontrar alguma coisa para comer que um estranho teve um gesto que Micola não esquece. "Era perto do Natal e vi alguém aproximar-se a dizer 'prenda, prenda'. No início tive medo, mas depois ele deu-me uma garrafa de vinho e um pouco de tudo o que se come no Natal." Ainda hoje, quando fala do assunto, os olhos muito azuis de Micola se comovem. "Não me conhecia. Viu-me da janela procurar comida no lixo e, só por bondade, veio ajudar-me."
O voluntariado apareceu meio por acaso na vida deste imigrante. "Eu estava na igreja e veio a enfermeira Fátima pedir-me ajuda para traduzir um estrangeiro que ela não percebia. Ela é uma senhora muito especial. Tem 63 anos, mas é muito enérgica, rápida, é uma enfermeira de guerra. É uma pessoa muito feliz e magnética... fiz-me voluntário quase de imediato". Agora conduz a unidade móvel dos Médicos do Mundo e ajuda nas traduções com os imigrantes de leste.
Hoje a realidade é outra, Micola já tem outro emprego, numa empresa de aspiração central e, por isso decidiu partilhar com os outros o que lhe sobra - tempo. "Trabalho das 6.00 às 24.00. Assim nem tenho que pensar no que fazer com o tempo livre. E ajudar é sempre bom", diz com uma gargalhada.

Fonte: Diário de Noticias
Redigido por:  Joana Rei
Em: 30 de Outubro de 2005

Postado por: Jéssica Ribeiro

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